sábado, 11 de abril de 2009

O gigolô das palavras

O gigolô das palavras

Quatro ou cinco grupos diferentes de alunos do Farroupilha estiveram lá em casa numa mesma missão, designada por
seu professor de Português: saber se eu considerava o estudo da Gramática indispensável para aprender e usar a nossa
ou qualquer outra língua. Cada grupo portava seu gravador cassete, certamente o instrumento vital da pedagogia
moderna, e andava arrecadando opiniões. Suspeitei de saída que o tal professor lia esta coluna, se descabelava
diariamente com suas afrontas às leis da língua, e aproveitava aquela oportunidade para me desmascarar. Já estava até
preparando, às pressas, minha defesa ("Culpa da revisão! Culpa da revisão !"). Mas os alunos desfizeram o equívoco
antes que ele se criasse. Eles mesmos tinham escolhido os nomes a serem entrevistados. Vocês têm certeza que não
pegaram o Veríssimo errado? Não. Então vamos em frente.

Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e que deve ser julgada exclusivamente
como tal. Respeitadas algumas regras básicas da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são
dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro, não necessariamente
certo. Por exemplo: dizer "escrever claro" não é certo mas é claro, certo? O importante é comunicar. (E quando possível
surpreender, iluminar, divertir, mover... Mas aí entramos na área do talento, que também não tem nada a ver com
Gramática.) A Gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas línguas mortas, e aí é de interesse restrito a
necrólogos e professores de Latim, gente em geral pouco comunicativa. Aquela sombria gravidade que a gente nota
nas fotografias em grupo dos membros da Academia Brasileira de Letras é de reprovação pelo Português ainda estar
vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o Português morra para poderem carregar o caixão e escrever sua autópsia
definitiva. É o esqueleto que nos traz de pé, certo, mas ele não informa nada, como a Gramática é a estrutura da língua
mas sozinha não diz nada, não tem futuro. As múmias conversam entre si em Gramática pura.

Claro que eu não disse isso tudo para meus entrevistadores. E adverti que minha implicância com a Gramática na certa
se devia à minha pouca intimidade com ela. Sempre fui péssimo em Português. Mas - isso eu disse – vejam vocês, a
intimidade com a Gramática é tão indispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na
matéria. Sou um gigolô das palavras. Vivo às suas custas. E tenho com elas exemplar conduta de um cáften profissional.
Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão.
Não raro, peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me
deixo dominar por elas. Não me meto na sua vida particular. Não me interessa seu passado, suas origens, sua família
nem o que outros já fizeram com elas. Se bem que não tenho o mínimo escrúpulo em roubá-las de outro, quando acho
que vou ganhar com isto. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São faladíssimas. Algumas são de baixíssimo calão.
Não merecem o mínimo respeito.

Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô
que se apaixonasse pelo seu plantel. Acabaria tratando-as com a deferência de um namorado ou a tediosa formalidade
de um marido. A palavra seria a sua patroa! Com que cuidados, com que temores e obséquios ele consentiria em sair
com elas em público, alvo da impiedosa atenção dos lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria impotente, incapaz
de uma conjunção. A Gramática precisa apanhar todos os dias pra saber quem é que manda.

VERÍSSIMO, Luis Fernando. Mais comédias para Ler na Escola. São Paulo: Objetiva, 2008.

3 comentários:

  1. Este texto é de uma riqueza!... Que boa escolha, aproveitaremos nas nossas reflexões.
    Um abraço,
    Cláudia

    ResponderExcluir
  2. Djalma, visitei teu blog, estou postando os relatórios aonde?

    ResponderExcluir
  3. Maravilha o seu cantinho.
    Clicando daqui, clicando dali, cheguei até você.
    Gostei do seu cantinho. Eu não estou podendo ler tudo de uma vez porque a tela do computador atrapalha um pouco a minha visão, mas certamente voltarei mais vezes. O meu oftamologista pediu que desse um tempo da telinha... e eu sou fraca ?
    O meu território já está demarcado.
    Convido a conhecer FOI DESSE JEITO QUE EU OUVI DIZER... em http://www.silnunesprof.blogspot.com
    Saudações Florestais !

    ResponderExcluir